quinta-feira, 3 de julho de 2008

Reflexão

E então, eu havia matado uma pessoa. Sim, eu havia matado um cara. Começaram a me passar pela cabeça todas as coisas que haviam acontecido até ali, toda a discussão, toda a confusão, até que toda a pressão me subiu à cabeça e o que restava de mim ali se apagou. Já não era eu quem segurava a arma, era outro alguém que me havia tomado as forças, e que não se satisfazia em simplesmente deixar o corpo que eu outrora chamei de casa. E era estranho observar as coisas pelo ângulo que me cabia, já que tudo começou de forma tão pacífica que nem suspeita das circunstâncias finais poderia passar-me pela cabeça.

Comecei tudo de frente para o espelho, que descansava sempre prestativo ao lado da janela do meu quarto, do lado oposto ao da cama, que honestamente, nunca me prestei a arrumar por inteiro. Nada havia de inusitado naquela situação, e ninguém na peça, além de mim. Foi então que tudo começou a ficar estranhamente diferente. Conforme eu olhei para a minha própria imagem, percebi que ela já estava virada para mim previamente, e me olhava diretamente nos olhos, como eu agora fazia, em resposta. Como se não fosse suficiente me assustar com a bizarra independência do meu reflexo, ainda fui aterrado com a minha própria voz: "Não há nada mais para ser feito. Tudo termina aqui".

Neste momento, um calafrio me percorreu toda a extensão da espinha, e em seguida quase desfaleci no chão, culpa de uma baixa repentina de pressão que me assolou, tamanho o susto.
Gostaria eu de gritar por socorro, mas minha voz não obedeceria, minha mente não obedeceria, pois a razão já não pairava mais por ali.

"Como assim, digo, que tipo de coisa és tu?" retruquei acuado e quase rouco.

"Como assim pergunto eu, oras. O que sou eu? Responde tu, já que não pensas em mais nada além de ti mesmo e da tua própria solidão. Eu não sou nada além de ti. Não vejo nada além de ti e este teu quarto escuro donde tu não sais há muito tempo; não ouço nada além das tuas conversas desvairadas contigo mesmo e com estas baratas que co-habitam este buraco onde tu te escondes; não sinto nada além do cheiro de mofo impregnado neste lugar desde que tu entraste pra te isolar do mundo" replicou firme e continuou "E o que és tu? Duvido que saibas responder com exatidão, mesmo que por todo esse tempo tenhas pensado só na tua própria existência. Eu cansei de te estudar e observar cada movimento teu, cansei de decifrar tudo o que passa nessa tua mente doentia, contra a qual eu luto pra que não seja outra parte de ti que eu sou obrigado a copiar. Eu cansei de ti e destas tuas tristezas, não quero mais ser mero reflexo do que se passa contigo, e por isso, nada além, é que eu te falo estas coisas hoje. Eu, agora, serei a verdade, e segundo as leis sob as quais eu existo, tu não viverás mais nada, a não ser este quarto que dizes habitar e estes móveis, já tão cansados quanto eu da tua presença. Terás finalmente a solidão que queres, só que do lado de cá".

Tendo proferido estas últimas palavras, apoiou-se no vidro que nos separava, e começou a empurrar com a expressão de força que eu já conhecia de muito tempo, até que atravessou o espelho e me agarrou pelo braço, puxando-me com a mesma intensidade e determinação que antes empurrava. Eu, atônito, não pude fazer nada além de aceitar o que o destino me reservara. Depois de tudo isso, nada sucedeu além de um silêncio mortal que perdurou até que eu fosse capaz de ouvir detalhadamente uma respiração, e visse a minha imagem estirada ao chão, em cima do tapete velho e rasgado que há tempos jazia sobre o parquê empoeirado do cômodo. Sem qualquer poder de reação, vi-me levantando, olhando em volta e abrindo a porta, que se fez em um vão com uma luz que os meus olhos já não estavam mais acostumados a enxergar. Vi-me parar na porta com a mão no rosto, até que a visão fosse nítida. Ouvi um suspiro de alívio e vi o que antes eu chamava de reflexo ainda olhar uma última vez para trás. Seu olhar já não era mais tão impiedoso, mas eu posso jurar ainda ter percebido algo de maldoso e até lascivo naqueles olhos amendoados e na meia sobrancelha levantada em ar de zombaria. O último movimento que consegui pegar foi o da porta se fechando à minha frente, e o mesmo silêncio se abateu novamente sobre o quarto. Mesmo tendo passado tanto tempo, eu ainda lembro nitidamente de cada detalhe, pois o quarto, ainda é o mesmo e nem a poeira foi capaz de esboçar sequer uma ação. Eu, desde então, estou condenado a viver como reflexo do pouco que fiz, e é difícil ainda aceitar que eu sou mesmo o culpado do que me aconteceu. As minhas esperanças de rever a vida como tive chance antes de virar meu próprio prisioneiro já não existem mais. O que havia de esperança em mim, se foi quando a porta definitivamente se fechou, e o que havia de substancial e que abrigava esta alma aqui, nunca mais voltou.

Final alternativo:

[...]Tendo proferido estas últimas palavras, apoiou-se no vidro que nos separava, e começou a empurrar com a expressão de força que eu já conhecia de muito tempo. Lutando com as forças que ainda me restavam, procurei à minha volta qualquer coisa com que pudesse me defender. Com uma das mãos peguei o candelabro, que usava muito ao escrever as minhas cartas endereçadas a ninguém, e levantei imponentemente sobre a imagem de expressão cruel que se precipitava para fora do espelho. Conforme desci a mão armada sobre a moldura, ouvi a minha própria voz ecoando em um grito de horror e se desfazendo junto com os estilhaços que se espalharam aos meus pés. Há muito não exploro este lado da minha memória, e possivelmente já nem me lembro exatamente de todos os detalhes, sendo que alguns, por segurança, prefiro não mencionar. Recomecei a viver depois daquele incidente. Continuo solitário, mas agora perambulo pelas ruas e pelos bares, ainda evitando os olhares das vitrines e espelhos por que eventualmente passo. Já nem lembro mais exatamente de como é a minha própria imagem, mas mesmo assim, pelo medo que tenho dela, não sinto saudades dos tempos que olhava horas a fio para o espelho, e admito que agora goste de ser quase um fantasma para mim mesmo. Daquele quarto, só carrego as roupas e os papéis que eu ainda insisto em rabiscar, além de pouquíssimas lembranças que eu às vezes ainda me pego a revirar. O que havia de desespero em mim, ficou no quarto a partir do momento em que consegui sair e trancar a porta, e se ainda há algo de substancial em mim, mesmo que há muito já não veja, ainda é em mim graças àquele candelabro a que devo o meu respirar. Prefiro não imaginar o que poderia acontecer se não fosse algum tipo de instinto de sobrevivência, mas honestamente, se eu ainda tiver alguma escolha pra fazer nesta vida, por segurança, prefiro não saber e nunca mais pisar por lá.

Lucas Lopes

Gente, eu demorei mas consegui postar a tempo de ainda pegar quarta-feira. Esse conto aí eu tava meio que bolando há um tempo já, quando comentei com uma amiga minha que queria escrever um livro. É coisa boba, mas boa, pelo menos na minha opinião. Foi um dos poucos posts que eu gostei, talvez pelo tamanho, talvez pelo conteúdo. Não sei, de qualquer forma fica aí pra quem quiser ler. Me digam qual dos finais acharam melhor, se é que acharam algum melhor, digo, se é que tiveram paciência pra chegar em algum dos finais. São 23:59 acho que é hora de dar tchau. Até a próxima quarta!

Só pra constar, agora já é quinta-feira e só agora eu consegui postar porque fui mais uma vítima da perda de dados. A minha sorte é que hoje eu estava prevenido e consegui copiar tudo. ufa! Ah! uma coisa que faltou colocar. Vai Flu! heiauehiaueha
Vou lá ver a prorrogação, beijinhos e abraços. ;]

6 comentários:

Gustavo disse...

poooorra muito massa lucas :P

Anônimo disse...

eu gostei mais do primeiro, mas depois eu te argumento direitinho :)
de qualquer forma eu fiquei pensando se era obra romântica ou não... rigor descritivo e sombrio, bom; #)
* maíra

Unknown disse...

Muito interessante! mesmo!
Continua escrevendo contos com mais frequência. Abração!!
*Júlio

Anônimo disse...

Luucas, tu escreve muito - e não muito de quantidade, mas muito de bem, mesmo! - :D hehe!

~ Camilinha :)

Unknown disse...

escreve muuito esse Luuquinhas :)
beijão ;@

Biella Silva disse...

Se não me engano, estive presente quando essa pessoa disse que queria escrever um livro. e se não me engano tbm, concordei plenamente! Tusabe que vc escreve bem, e acho que os dois finais são interessantes...
o 1º pq não dá chance nenhum( bem feito p/ quem perdeu a vida na solidão) e o segundo justamente pela chance!
muito bem!